Passarim.

joão

Posted in 1 by passariim on fevereiro 16, 2010

Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;

assim como uma bala
do chumbo mais pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado;

qual bala que tivesse um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo

igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,

relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;

assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;

qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.

A

Seja bala, relógio,
ou a lâmina colérica,
é contudo uma ausência
o que esse homem leva.

Mas o que não está
nele está como bala:
tem o ferro do chumbo,
mesma fibra compacta.

Isso que não está
nele é como um relógio
pulsando em sua gaiola,
sem fadiga, sem ócios.

Isso que não está
nele está como a ciosa
presença de uma faca,
de qualquer faca nova.

Por isso é que o melhor
dos símbolos usados
é a lâmina cruel
(melhor se de Pasmado):

porque nenhum indica
essa ausência tão ávida
como a imagem da faca
que só tivesse lâmina,

nenhum melhor indica
aquela ausência sôfrega
que a imagem de uma faca
reduzido à sua boca;

que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente.

(Uma faca só lâmina / ou: serventia das idéias fixas/, 1955)

Posted in Literatura by passariim on janeiro 22, 2010
“Alguém baixou com suavidade minhas pálpebras,
me levando, desprevenido, a consentir num sono
ligeiro, eu que não sabia que o amor requer vigília.”
.
.

Raduan Nassar

Posted in Literatura by passariim on janeiro 7, 2010

por que então me fez entrar? por que então me abriu francamente teus pensamentos, teus sentimentos e o portão? por que esse silêncio depois de tanto contentamento, tantas palavras, tantas promessas? por que então pedir calma, me pedir pra ficar, me pedir qualquer coisa que não fosse adeus? por que não disse logo que ia ser assim desde o começo, como sempre foi?

nylon smile

Doçura. Era isso e isso era tudo.

Posted in Dispersos by passariim on dezembro 27, 2009
Para a Daniele, que foi a ternura dos meus últimos 365 dias.

 

É que às vezes tenho vontade de calar. O mundo me parece sempre muito pesado. É estranho falar de você se nós nunca precisamos de palavras. Lembro-me bem da sua chegada, para quem vê de longe é quase poesia: seu cabelo molhado, palavras germinando na ponta dos dedos, o fundo azul. Tudo rápido demais, não se podia nem mesmo chegar ao centro. Logo os muitos planos obviamente falsos; nós nos divertíamos com os seus delírios e a minha falta de graça. (Os nossos defeitos parecem tanto com qualidades, quando estamos juntas).

Antes de você eu tinha as minhas ruas todas, as casas empilhadas, amendoeiras, a estufa. É difícil hoje organizar na memória o que eu era antes de ter aberto assim tanto espaço para que você pudesse caber (só eu sei o quanto dói o vazio que fica da tua ausência). Você é abundante mesmo, exige espaço, exige esforço, deságuo para lidar contigo. Agonizo. Os que te vêem leve não te contêm verdadeiramente.

Fica então o jogo: você pede o café, eu peço a água. Você me olha e eu tenho medo. É bem essa a palavra. Vou me dissolvendo pelos cantos e o frio da mesa é quase a falésia da antiga espera: dois minutos de silêncio. Você pega o guardanapo e eu finjo que entendo. Mais dois minutos e a lição de que nós fomos feitas muito pra nós.

Cá do outro lado é tudo tão mais frio. Às vezes sinto o cheiro de você ao dobrar certa esquina. Eu sei que você não vem, mas ainda assim, espero por alguns instantes. Tudo empalidece tão rápido, é o frio por entre as frestas, o vazio das minhas ruas, vagueza maior, a iminência da tua partida incerta. Sempre titubeamos ao falar do adeus, nos dói igual, ambas tivemos a nossa redoma – somos, somos, somos. (Embora eu não consiga lembrar, também não consigo esquecer).

Hoje é tudo tão incerto. Você me guarda por trás das suas lentes se desfazendo das sobras do que antes era inteiro. Você é de coisas sempre novíssimas, desejadas obsessivamente, muito fervor no querer. É a fotografia manchada que te apetece, o cão feio, a música velha, os tênis de avô. Os seus desejos são estranhos demais. São muito iguais aos meus.

Ficam coisas tuas sempre, é impossível te deixar. Sei bem o peso das palavras e ouso repeti-las em letra maiúscula: IMPOSSÍVEL TE DEIXAR. Porque você é feita de simplicidade, de ternura, porque antes de você eu não conseguia ver as cores que descobrimos juntas. Essas cores que só existem nas manhãs que já prometi a você. Eu não quero te esquecer. Eu não posso te esquecer. “Só você enxerga as cores e os coloridos que ninguém vê”.

 ( desculpa pelo textinho meia boca, amiga, mas foi com um carinho enorme. <3)

Posted in Literatura by passariim on dezembro 21, 2009
Preciso não dormir até se consumar o tempo da gente. Preciso conduzir um tempo de te amar, te amando devagar e urgentemente. Pretendo descobrir no último momento um tempo que refaz o que desfez, que recolhe todo o sentimento e bota no corpo uma outra vez.
Prometo te querer até o amor cair doente. Prefiro então partir a tempo de poder a gente se desvencilhar da gente. Depois de te perder, te encontro, com certeza, talvez num tempo da delicadeza, onde não diremos nada, nada aconteceu, apenas seguirei, como encantado, ao lado teu.
chico buarque
(mi hombre!)

leve

Posted in Dispersos by passariim on dezembro 16, 2009

Pense que eu cheguei de leve
Machuquei você de leve
E me retirei com pés de lã
Sei que o seu caminho amanhã
Será um caminho bom
Mas não me leve

chico buarque

o sorriso

Posted in Literatura by passariim on dezembro 15, 2009

Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.

eugenio de andrade

Posted in Literatura by passariim on dezembro 9, 2009

Te amo como as begônias tarântulas; como as sementes se amam enroscadas lentas algumas muito verdes outras escuras; a cruz na testa lerdas prenhes; dessa agudez que me rodeia, te amo ainda que isso te fulmine ou que um soco na minha cara me faça menos osso e mais verdade.

hilda hilst

do desejo

Posted in Literatura by passariim on dezembro 7, 2009

E por que haverias de querer minha alma

Na tua cama?

Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas

Obscenas, porque era assim que gostávamos.

Mas não menti gozo prazer lascívia

Nem omiti que a alma está além, buscando

Aquele Outro. E te repito: por que haverias

De querer minha alma na tua cama?

Jubila-te da memória de coitos e de acertos.

Ou tenta-me de novo. Obriga-me.

Colada à tua boca a minha desordem.

O meu vasto querer.

hilda hilst

Posted in Literatura by passariim on dezembro 6, 2009

Por favor
não me aperte tanto assim
tenha cuidado, pega leve
olha onde pisa
isso é meu coração
meu ganha-pão
instrumento de trabalho,
meio de vida, profissão
meu arroz com feijão
meu passaporte
para qualquer parte
para qualquer arte
não machuque esse meu coração
preciso dele
para me levar a Marte
sem sair do chão
não me aperte
não machuque
tome cuidado
eu vivo disso
poesia, sonhos
e outras canções
sem emoção
morro de fome
sinto muito
mas não há nada
que eu possa fazer
sem coração

alice ruiz